Ninguém jamais disse que havia algo de errado com ele. Na verdade, diziam o contrário. Ele era admirado, respeitado, o tipo de homem que resolve o que precisa ser resolvido. Discreto, direto, focado, quase inabalável.
Os compromissos estavam em dia, as metas, atingidas. O corpo, disciplinado; a mente, controlada; a rotina, eficiente.
Ele fazia o que precisava ser feito, e fazia bem.
Mas, às vezes, entre uma reunião e outra, ou no meio de uma comemoração que deveria ser feliz, surgia um silêncio estranho. Não era ausência de som, mas uma falta interna, como se algo essencial não estivesse presente.
Ele tentava não pensar nisso. Afinal, o pensamento racional era seu território. E, como muitos homens que carregam o mundo nas costas, ele acreditava que sentir demais era um risco. Que o que não é mensurável não serve.
Com o tempo, esse “não saber o que falta” tornou-se normal. E, como todo homem treinado para seguir mesmo cansado, ele continuou. Com passos firmes, decisões rápidas, mas, sem perceber, sem braços.
Não braços físicos. Ele os tinha, é claro. Mas havia algo no jeito como não se entregava em um abraço, no modo como afastava o toque, desviava o olhar quando alguém se aproximava demais. Algo no modo como não sabia o que fazer com o próprio corpo quando o assunto não era prático.
Ele não enxergava seus próprios braços. Usava-os para carregar, controlar, proteger, mas não para acolher, nem para receber. E, por isso, vivia como quem nunca de fato tocou a própria vida.
O mundo nunca lhe apontou isso. Pelo contrário, ele era referência, modelo, inspiração.
Ninguém dizia que faltava algo, porque no mundo onde ele cresceu, esse tipo de ausência era tratada como força. E ele acreditou. Até que o cansaço foi além do corpo.
Um dia, ele começou a subir uma colina perto de casa. Era cedo, o mundo ainda não tinha acordado direito. Não havia propósito claro naquele gesto, era só um impulso, uma vontade de ver o céu, de encontrar algo sem nome.
No alto, ele não fazia nada. Ficava ali, parado, olhando para o horizonte, para o Sol. Silêncio. Só isso. Um lugar onde ele, finalmente, não precisava funcionar.
No começo, parecia perda de tempo. Mas, aos poucos, aquele tempo se tornou um refúgio. Não porque ali havia respostas, mas porque ali ele podia respirar sem ter que provar nada.
Foi nesse espaço sem cobrança, sem expectativa, sem necessidade de performance que ele começou a sentir algo diferente.
Não era emoção descontrolada, mas uma presença nova. Um tipo de calor interno, como se o corpo começasse a responder a uma parte que ele tinha esquecido.
E então veio a sensação.
Não foi um choque, mas uma revelação silenciosa:
Apesar de sempre ter tido braços, era ali que seus braços estavam realmente nascendo.
Braços que ele agora conseguia ver, reconhecer. Braços que não serviam mais apenas para agir, mas para acolher, tocar, sustentar e receber.
Braços que agora lhe davam acesso a coisas que antes ele não sabia que existiam: o gosto real da comida, o calor de um abraço que dura um pouco mais, a beleza de um pôr do sol sem pressa, o brilho no olhar do filho enquanto conta uma história, o sorriso da mulher que, por anos, ele dizia amar — mas só agora conseguia sentir de verdade.
Era como se o mundo finalmente ganhasse textura, cor e profundidade. Como se ele saísse do automático pela primeira vez. Como se ele parasse de sobreviver e começasse a viver.
Ele não ficou mais sensível, ficou mais inteiro, mais presente, mais humano, mais disponível para a própria vida.
E naquele dia, no alto da colina, olhando o Sol, ele chorou. Não de dor, mas porque se reconheceu pela primeira vez.
⸻
Essa é a história de Lumen. Mas poderia ser a de qualquer homem. Homens que funcionam, que produzem, que cumprem tudo o que foi prometido, menos a própria alma.
Homens que andam com pernas fortes, mas não tocam a própria vida com consciência. Homens que amam, mas não sabem demonstrar. Que sentem, mas não sabem nomear. Que têm tudo, mas se sentem vazios e não entendem por quê.
A psicologia de Jung nos ensina que aquilo que não é integrado se manifesta como sombra, como destino, como repetição. E muitos homens estão presos em ciclos que não entendem simplesmente porque nunca olharam para os braços que lhes faltam.
A ausência pode ter sido ensinada como força. Mas a verdadeira força não é não sentir. É se permitir.
Se permitir experimentar, saborear, ser visto. E, acima de tudo, se permitir receber o que há de mais humano: amor, prazer e sentido.
Talvez o que está faltando em você não seja mais esforço, mas sim a coragem de olhar para o que ficou adormecido e permitir que isso, finalmente, nasça de dentro.