Amor, posse e liberdade: por que exigimos exclusividade sexual de quem amamos?

Durante séculos, fomos ensinados que o amor verdadeiro exige exclusividade sexual. essa ideia foi repetida tantas vezes que se tornou uma norma silenciosa: se você ama, você não deseja mais ninguém; e se o outro te ama, ele deve ser seu, só seu. mas será que essa exigência nasce do amor, ou de algo mais profundo, menos consciente e mais emocionalmente frágil?

Por trás da exigência de exclusividade sexual, muitas vezes há uma tentativa inconsciente de controle. o desejo de ser o único na vida e no corpo de alguém pode parecer romântico, mas frequentemente é apenas uma forma emocional de conter a própria insegurança. um mecanismo de defesa que tenta garantir o vínculo pela via do medo, e não da liberdade.

Historicamente, a imposição da monogamia e da exclusividade sexual não nasceu por amor, mas por necessidade de organização política, social e religiosa. a partir dos séculos IV e V d.C., com o fortalecimento da Igreja Católica no Império Romano, o corpo feminino passou a ser sistematicamente regulado. a Igreja via a sexualidade, especialmente a feminina, como uma ameaça à ordem patriarcal, pois mulheres sexualmente livres representavam filhos de paternidade incerta, heranças contestadas e lares instáveis. ou seja, a sexualidade feminina colocava em risco a principal estrutura de poder: a herança, o nome e o controle do homem.

Os Padres da Igreja, como Tertuliano, Ambrósio e Santo Agostinho, escreveram doutrinas que associavam a mulher ao pecado original, à luxúria e ao desvio da alma. a infidelidade da mulher era tratada como crime contra a honra masculina, a propriedade familiar e a ordem divina. já a infidelidade masculina era muitas vezes ignorada ou tratada com indulgência. esse desequilíbrio foi justificado com base na ideia de que o homem era racional e a mulher, instintiva, logo, ela deveria ser vigiada, punida e subjugada. a sexualidade feminina foi então associada à culpa, e a pureza tornou-se sua única forma de aceitação moral.

Mas o ser humano não é feito para viver apenas segundo regras impostas externamente. a neurociência moderna nos mostra que somos biologicamente ambivalentes: desejamos vínculos profundos, mas também somos estimulados pela novidade. o desejo sexual é impulsionado principalmente pela dopamina, o neurotransmissor ligado à motivação, recompensa e antecipação de prazer. ela se ativa com o novo, com o incerto, com o que ainda não foi conquistado. por isso, o desejo tende a diminuir em relações de longo prazo, mesmo quando o amor permanece.

Por outro lado, o apego e a confiança são sustentados por outro sistema neuroquímico: o da ocitocina, conhecida como o “hormônio do amor”. liberada durante o toque, o orgasmo, a amamentação e a intimidade emocional, a ocitocina fortalece vínculos de segurança, pertencimento e confiança. ou seja: é biologicamente possível amar profundamente alguém e, ao mesmo tempo, sentir desejo por outras pessoas. isso não é sinal de falha afetiva, é a expressão da complexidade humana.

A ideia de que só se pode amar uma pessoa por vez é um condicionamento social, não uma verdade psíquica. a maior prova está na forma como amamos nossos filhos: ninguém ama menos o segundo filho por já ter o primeiro. o amor não se divide, ele se multiplica. quando alguém rebate dizendo “mas filhos são diferentes”, vale lembrar que o amor não depende do tipo de vínculo, mas da qualidade da presença. posso amar alguém e não querer me relacionar sexualmente com essa pessoa. posso desejar alguém e, ainda assim, escolher outro caminho afetivo. confundir amor com exclusividade sexual é reduzir a potência relacional a um contrato de posse.

Essa confusão é alimentada por feridas emocionais que raramente são reconhecidas. o padrão de apego ansioso, por exemplo, se forma quando a criança cresce com cuidadores imprevisíveis, às vezes presentes, às vezes ausentes. esse ambiente inconsistente gera, na vida adulta, um medo constante de abandono e uma necessidade intensa de aprovação. a exigência de exclusividade, nesses casos, não nasce da liberdade de escolher estar com alguém, mas da insegurança de não se sentir suficiente. exige-se exclusividade não por amor, mas por medo de ser esquecido, trocado ou comparado.

É por isso que a exclusividade sexual só tem valor quando é uma escolha consciente, e não uma resposta automática ao medo. estar em uma relação monogâmica pode ser lindo, desde que não seja uma obrigação disfarçada de compromisso. amar alguém verdadeiramente é confiar que, mesmo podendo escolher outra pessoa, ela escolhe você. a liberdade, aqui, não ameaça o vínculo, ela o fortalece.

No entanto, nossa cultura ainda reforça modelos de masculinidade baseados em poder, posse e desempenho. o homem idealizado é aquele que tem um carro de luxo, um corpo forte, uma parceira exclusiva e estabilidade financeira. quando um homem não se encaixa nesse modelo, ele muitas vezes tenta compensar sua insegurança exigindo fidelidade absoluta, controle sobre o corpo da parceira e vigilância constante. não por amor, mas por medo de não ser suficiente.

A ciência sexual comprova o impacto dessas inseguranças no prazer. o terapeuta sexual Barry W. McCarthy mostrou que homens com autocrítica elevada e medo de desapontar a parceira são mais propensos a desenvolver ansiedade de desempenho e disfunção erétil psicogênica. a pesquisadora Lori Brotto, da University of British Columbia, revelou que mulheres que vivem sob controle, pressão ou obrigação sexual desenvolvem anestesia sensorial, queda de libido e desconexão do próprio corpo. o corpo não mente: ele se fecha quando não se sente seguro.

Esses bloqueios geralmente têm origem na infância. crianças que foram punidas por sentir, que só receberam afeto quando se comportaram de determinada forma, ou que se sentiram invisíveis para seus cuidadores, crescem acreditando que o amor precisa ser merecido. para essas pessoas, exigir exclusividade é quase uma súplica não verbal: “me prova que eu sou suficiente”. e nesse cenário, o outro deixa de ser um parceiro e passa a ser um espelho da ferida não curada.

Amar com maturidade exige reconhecer que o outro é livre. que só tem valor aquilo que é escolhido com consciência. o amor não se sustenta no controle, mas na verdade. a exclusividade não garante amor. a liberdade, sim. porque onde há escolha, há presença. onde há imposição, há medo disfarçado de compromisso.


Exercício prático: o espelho do ciúme

Sente-se em silêncio por alguns minutos. feche os olhos e respire profundamente três vezes, sentindo o ar entrar e sair pelo nariz.

Lembre-se da última vez em que sentiu ciúmes. pode ter sido em um relacionamento amoroso, em uma amizade, no trabalho ou em uma situação cotidiana.

Pergunte a si mesmo: – “Que emoção estava por trás do meu ciúme?” – era medo? medo de perder uma mulher que me faz sentir especial? – era tristeza? tristeza de me sentir invisível, deixado de lado ou trocado? – era raiva? raiva por sentir que fui desrespeitado ou esquecido?

Reflita com sinceridade sobre o que aquela emoção estava te contando: – se era medo, talvez você tenha crescido em um ambiente onde o afeto era instável. e agora, tenta garantir segurança controlando a situação ou a parceira. exemplo: “sinto medo quando vejo minha parceira conversando com outro homem, porque isso me lembra o vazio que senti quando minha mãe não me dava atenção.” – se era tristeza, talvez você tenha aprendido que só seria amado se fosse perfeito ou o único. e qualquer ameaça a isso ativa uma dor antiga. exemplo: “sinto tristeza quando ela elogia outro homem, porque isso me faz pensar que não sou mais suficiente.” – se era raiva, talvez você tenha sido ensinado que amor é sinônimo de exclusividade, e tudo que foge desse modelo é interpretado como traição. exemplo: “sinto raiva quando ela sai sozinha, porque fui ensinado que quem ama não busca mais ninguém.”

Agora coloque uma das mãos sobre o peito e diga internamente: “eu reconheço a emoção que está aqui. ela é válida, mas não precisa mais guiar minhas escolhas. eu posso sentir e, ainda assim, responder com maturidade.”

Escreva em um papel: “amar não é garantir. amar é confiar. e confiança começa quando eu cuido do que sinto, em vez de tentar controlar a minha parceira.”

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